Celebrada banda do rock progressivo brasileiro, o Som Nosso de Cada Dia teve uma trajetória tão intricada quanto sua própria música. Enfrentou todas as agruras do mercado musical brasileiro e de sua postura historicamente tacanha, e com um ato de heroísmo, conseguiu ao menos lançar um disco fundamental para toda uma concepção sonora que floresceu junto a outros pioneiros em um par de anos na década de 70. Com a recente morte do baixista, compositor e fundador Pedro Baldanza, a banda agora figura quase que inteiramente em outra galáxia, já que seus principais membros partiram para outras dimensões – Pedrinho Batera partiu em 1995, Manito (teclados, sopros) em 2013 e o guitarrista Egídio Conde em 2015. Pedro Baldanza havia gravado um novo trabalho (batizado como “Mais um Dia”) há poucos meses atrás com uma formação repaginada do SNCD, que contava dentre outros músicos com os renomados Roberto Lazzarini (Terreno Baldio) e Marcelo Schevano (Carro Bomba). Neste texto vamos passear pela discografia do grupo, em um préstimo a todos aqueles que nos fizeram viajar em melodias e ritmos siderais.

Snegs (1974)

Eis um disco que é um marco do rock progressivo brasileiro. A despeito do sucesso comercial de Raul Seixas, Rita Lee, Mutantes e O Terço na década de 70, o maior filão do rock brasileiro nesta época era essencialmente underground, ainda que houvesse um público numeroso. E o Som Nosso de Cada Dia tem lugar de honra nesse território. Snegs é a tradução, em sons, da garra e do pioneirismo frente às adversidades. É art-rock em estado bruto. O disco foi gravado em 1973, lançado apenas no ano seguinte, e tudo ali era ousadia – a formação incomum (um trio sem guitarrista fixo), a sonoridade repleta de sintetizadores, a musicalidade avançada dentro do rock e as letras filosóficas (praticamente uma espada sem corte). Manito era o mágico multi-instrumentista; Pedro Baldanza, a força motriz do grupo com seu baixo e as composições e Pedrinho Batera, a máquina ritmica e o verbalizador daquela expressão. Snegs tem uma variedade fantástica de climas, com um virtuosismo saudável e tortuosas convenções pela música progressiva. Dificilmente existe algo com o qual haja comparação, ainda que estejamos falando em nível internacional. A combinação de ideias e a amarração dos arranjos, a parafernália eletrônica misturada a incursões com flauta, saxofone e violinos, os vocais repletos de expressão e algum apelo soul na voz de Pedrinho Batera formam um caldeirão único de composições. Todas, tranquilamente, podem ocupar o espaço de favorita do ouvinte, ainda que apenas por um tempo.  O único revés é a produção sonora, que deixou o som um pouco abafado e não reproduz com fidelidade o som da bateria e dos vocais. Eram nossos parcos recursos disponíveis a uma banda de calibre internacional. Uma curiosidade com relação à capa: trata-se de um desenho inacabado.

Som Nosso (Sábado e Domingo) (1977)

Manito deixou a banda em 1975 e uma grande reformulação sonora ocorreu, além de muitas reviravoltas em todos os sentidos. O grupo passou a contar com Tuca Camargo e Dino Vicente nos teclados e com um guitarrista fixo, Egídio Conde (ex-Moto Perpétuo). As canções foram modificadas em seus arranjos e novos sons foram trabalhados, ampliando ainda mais o clima espacial das faixas e sua extensão. A banda realizou muitos concertos no período e trabalhou na concepção de uma longa suíte conceitual chamada Amazônia. Porém, encontraram dificuldades para gravar e principalmente para lançar o novo trabalho. Nesse período também o grupo passou a experimentar um novo repertório, completamente diferente, calcado no funk, no soul e na black music americana. Aí, a gravadora enxergou o potencial comercial do Som Nosso e decidiu desengavetar o projeto do segundo disco. Essa estranha combinação foi a gênese do segundo disco do grupo, lançado em 1977. De forma totalmente alheia à vontade da banda, o lado A do disco mostra essa faceta funk e o lado B com trechos retalhados da suíte Amazônia.  Para quem pega o disco sem conhecer essa história a coisa soa bastante estranha ou até indigesta, ainda que o lado A tenha muita qualidade nesse campo. Era uma música perfeita pra agitar bailes como os que rolavam no subúrbio carioca e “Pra Swingar” é de fato uma faixa emblemática. Para quem conheceu a banda a partir de Snegs, o lado B do disco é um consolo, com faixas que demonstram uma evolução da veia progressiva do grupo. Temos ali uma maior influência do jazz-rock, se somando a uma típica pegada brasileira, já apresentada no disco anterior. “Rara Confluência” e “Neblina” são faixas que mostram o altíssimo nível do que seria a suíte Amazônia. A banda se desiludiu com toda essa misturança e a falta de visão comercial da gravadora CBS e foi definhando, até acabar no ano seguinte.

Live ’94 (1995)

Disco que celebra a volta do grupo e os 20 anos do lançamento de Snegs, com o retorno da formação original e o lançamento de Snegs em formato CD. Historicamente, de grande importância, porém, musicalmente o resultado apresentado é fraco. Dois shows realizados em São Paulo em 1994 deram origem a esse registro que conta também com Jean Trad na guitarra e Homero Lolito nos teclados, tendo Manito a responsabilidade pelo saxofone e pela flauta, já que o próprio considerava estes como seus instrumentos oficiais (!). A sonoridade, especialmente dos teclados, não condiz em nada com seu passado analógico. A pegada também foi suavizada (uma espécie de pé no freio) e os vocais de Pedrinho se apresentam bastante debilitados pelo tempo e pelos problemas de saúde. Apenas três canções de Snegs estão presentes – Sinal da Paranóia, Bicho do Mato e Som Nosso de Cada Dia. Temos ainda as inéditas “Docas” (uma canção da época, não gravada) e “Nada para Lembrar” que até se destacam, numa vertente mais fusion. Pedrinho Batera faleceu precocemente pouco depois do lançamento do disco e o nome Som Nosso de Cada Dia foi enterrado por mais uma série de anos.

A procura da essência – Ao vivo 1975-1976 (2005)

Um lançamento louvável no esforço da valorização da obra do Som Nosso de Cada Dia. O disco é duplo, e foi lançado pelo selo Editio Princeps, com um primoroso trabalho gráfico e informativo. Musicalmente, uma junção de diversas faixas ao vivo do grupo, captada de diferentes formas, todas amadoras, mas ainda conservando um razoável (porém irregular) grau de qualidade. Trata-se de um bootleg “chic”, com música da melhor qualidade. Aqui lança-se luz sobre a vertente que a banda adotou depois da saída de Manito e do ingresso de Egídio Conde. Em alguns períodos, que não são identificados nas gravações, a banda contou com dois tecladistas – Dino Vicente e Tuca Andrade (ex-Apokalypsis) e também com o percussionista Rangel. Aqui temos outros trechos da suíte Amazônia executados ao vivo, como a fantástica “Bote Salva-Vidas”, que inicia num clima melódico-espacial para descambar em um funk-fusion. Todas as músicas apresentam arranjos bem mais longos do que as equivalentes em estúdio e pode se comprovar, em termos práticos, a competência da banda, mantida intacta ao longo de suas diversas formações. Outra faixa inédita é “Sonhas Paulinho”, composição de Egídio Conde, e diversas faixas com um clima de jam-session e experimentação, com solos de bateria e outras loucuras. Alguns anos depois, surge outra gravação do grupo ao vivo no Teatro Aquarius em 1976, mas que não apresenta outras canções inéditas, exceto o registro de duas jams instrumentais.


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