Diferentemente dos estilos derivados do blues (hard rock/blues-rock), no qual a reinterpretação ou o rearranjo de temas tradicionais sempre foi algo comum, o rock progressivo se caracterizou desde o início como uma música fortemente autoral, já que sua própria gênese estava relacionada a uma ruptura estética com o que já existia na música jovem dos anos 60. Contudo, esse raciocínio não pode ser adotado em 100% dos casos e sim, havia uma base musical ampla e diversa que foi aproveitada também diretamente em grandes obras do rock progressivo em seu período áureo.

Podemos dividir esse texto basicamente em dois grandes blocos – Beatles e a música erudita. Os Beatles foram um dos pilares da evolução da música pop, do alargamento das fronteiras do rock, que levou ao rock progressivo. Não somente em termos conceituais, mas também em termos musicais, já que sua música era rica harmonicamente e experimentou muitos caminhos e sonoridades antes inexplorados. O Yes, que tinha influências fortes dos Beatles, ficou notável pela bela versão de “Every Little Thing” que consta de seu primeiro disco, incluindo partes novas na música, incrementando a riqueza de seu arranjo e revalorizando sua melodia. Bandas pré-progressivas também fizeram sua parte ao incluir composições dos Beatles em seus repertórios – o Tomorrow, banda de Steve Howe antes do Yes, com Strawberry Fields Forever e o Circus, grupo de Mel Collins antes do King Crimson, com uma bela interpretação de Norwegian Wood. Essa faixa também era enxertada em uma espécie de meddley executado pelo The Nice, de Keith Emerson, durante a música For Example. Também cabe menção honrosa a poderosa releitura feita pelo Spooky Tooth para I’m the Walrus, que alguns fãs afirmam ter superado a original. Ao longo dos anos, outras versões dos Beatles ficaram célebres no universo prog – Eleanor Rigby, com uma estonteante versão feita pelo Esperanto, no disco Last Tango (1975), a versão do 801 (de Phil Manzarena) para Tomorrow Never Knows, do álbum ao vivo lançado em 1976 e a versão de Steve Hillage para It’s All too Much (1977), que também ganhou uma versão roqueira do grupo Journey quase na mesma época. No mesmo ano também o Gryphon fez uma bela versão acústica para Mother Nature’s Son.  

Falando em Yes, em seus primeiros anos a banda fez incríveis releituras e talvez seja a banda mais famosa a ter trabalhado releituras de forma maciça – I See You, dos Byrds; No Experience Needed, No Opportunity Necessary, de Ritchie Havens e America, de Simon Garfunkel, foram todas marcadas com o DNA da riquíssima musicalidade do Yes. Também o Yes faz a ponte para entrarmos para o universo da música erudita – em Fragile (1971), Rick Wakeman releu o trecho de um dos movimentos da 4ª sinfonia de Brahms, na faixa Cans and Brahms e nas apresentações solo do período enxertava Hallelujah, de Hendel, em seu número solo oriundo de seu disco Six Wifes of Henry VIII. A título de menção, no mesmo período o Yes usava um trecho da Firebird Suíte, de Igor Stravisnki, como abertura de seus shows.

No território clássico, o trio Emerson Lake and Palmer talvez seja o mais proeminente exemplo de apropriação – a primeira faixa de seu primeiro disco já pega emprestado trechos de Allegro Barbaro, de Bartók, e também de Rondo, do jazzista Dave Brubeck. Knife Edge, outra faixa de seu primeiro álbum, resgata trechos de Leos Janácek (Sinfonieta) e de J.S. Bach (Allemande, da Suíte Francesa em D Menor), além de ter feito um álbum inteiro recriando a obra do compositor Mussorgsky (Pictures at na Exhibition) e ter feito bastante sucesso com versões de duas peças de Aaron Copeland – Hoedow (do álbum Trilogy, 1972) e Fanfarre for a Common Man (do álbum Works Vol. I, 1977), dentro vários outros exemplos possíveis. Já o King Crimson adotou como base para a música The Devil’s Triangle, do álbum In the Wake of Poseidon, trecho da suíte The Planets, de Gustav Holst, além de várias referências a Bartók em seu álbum Larks Tongues in Aspic. Bartók foi relido em um álbum completo pela banda húngara Panta Rhei e também pelos brasileiros do Dialeto, em recente álbum resenhado aqui neste blog. Também não poderíamos deixar de mencionar o Jethro Tull, com a icônica releitura para Boureé, de J.S. Bach, que se tornou uma faixa muito requisitada em shows da banda décadas a fora e o Curved Air com Vivaldi, faixa auto-explicativa. Dentre as bandas mais famosas do estilo é interessante mencionar o Focus, que tem um dos trechos de sua suíte Eruption (o trecho batizado como “Tommy”) sendo uma versão de uma música de outra banda holandesa, o Solution, com a faixa Circus Circumstances. Outro caso curioso é o do Soft Machine, cuja base da lendária faixa Hazard Profile Part. I é tirada da música Song for a Bearded Lady do grupo Nucleus.  

A banda holandesa Ekseption, que projetou o multitecladista Rick van der Linden, era uma especialista em transformar peças clássicas para o rock, tendo sido inclusive um dos pioneiros nessa fusão ao longo de vários álbuns no fim dos anos 60 e início dos anos 70, tradição que foi mantida parcialmente com o grupo Trace, que também fez enxertos de música clássica em seus álbuns. Na Alemanha, os músicos da banda Lucifers Friend tinham um projeto paralelo chamado Pink Mice, dedicado exclusivamente a reinterpretar clássicos da música erudita – Beethoven, Bach, Grieg, Haydn e Mozart. Ainda na Alemanha, cabe a menção ao Triumvirat, que assim como o ELP fez vários enxertos clássicos em suas músicas e o grupo Pell Mell, com o belíssimo álbum From the New World, no qual reinterpreta a sinfonia do mundo novo, de Antonin Dvorák, além de também incluir Bach no repertório do álbum. Já na Espanha, o grupo Los Canários com o álbum Ciclos recriou em versão progressiva as 4 estações de Vivaldi, entre muitos outros exemplos possíveis. Aqui no Brasil, há a poderosa versão do Som Nosso de Cada Dia para O Guarani, de Carlos Gomes, gravado no breve retorno da banda nos anos 1990. Mas em termos de Brasil o caso mais célebre de releitura progressiva foi o primeiro álbum da cantora Olyvia Byington, que releu com muita intensidade o repertório prog-folk do grupo A Barca do Sol.

Muitas bandas que vieram na segunda onda do rock progressivo usaram brevemente do expediente de fazer versões dos pioneiros do rock progressivo, como é o caso do Museo Rosenbach, do Osanna e do New Trolls na Itália, do Kansas e do Ethos nos EUA e de muitas outras bandas que infelizmente tiveram menor projeção ao longo dos anos. Ao longo dos anos, bandas progressivas fizeram toda a sorte de tributos a ícones do passado, tal como o Dream Theather, que fez shows inteiros com repertório de grupos clássicos como o Pink Floyd, até chegarmos a explosão de grupos especializados em tributos, que mantém o repertório de bandas clássicas do rock progressivo em constante evidência.  

Nesse ínterim, dois projetos atualmente na ativa merecem destaque – o primeiro deles é o grupo carioca Ícones do Progressivo, que reúne instrumentistas de altíssimo nível e grande experiência no cenário reldno clássicos do ELP, Focus, Genesis, Yes, Jethro Tull, Steve Hackett e Premiata Forneria Marconi com maestria. O segundo deles é o Fleesh, que conta com uma produção luxuosa e caprichadíssima em áudio e vídeo para reler com fidelidade obras progressivas do quilate de Genesis, Renaissance, King Crimson, Pink Floyd entre outros grupos pós-70. A semana vindoura será uma grande oportunidade para quem quiser mergulhar nessa dimensão – o Fleesh se apresenta com seu repertório autoral no Centro Cultural Justiça Federal, dia 22/10, as 19 h e os Ícones do Progressivo sobem ao palco do Teatro Municipal de Niterói, dia 24/10, as 20 h. Duas grandes ocasiões para ouvir boa música progressiva.


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