O rock progressivo tornou-se algo peculiar dentro do universo do rock devido a proeminência musical e a ousadia instrumental. Contudo e não com menor importância, o aspecto lírico, as letras das músicas, também adquiriram especial importância em seu desenvolvimento, principalmente pelo fato de que o rock progressivo foi quem popularizou os álbuns conceituais na história da música pop.

O estereótipo negativo que se criou ao redor do estilo – uma música hermética, demasiadamente longa e exagerada em variações, retratando mundos paralelos e ficções científicas – torna turva as discussões sobre o quão importante foram as letras de música no rock progressivo e a dimensão de suas contribuições para toda a construção do rock enquanto manifestação artística.

Ainda que haja incontáveis exemplos de bandas e músicas com letras abstratas e pouco preocupadas em ocupar um espaço de destaque na obra, há todo um conjunto de discos e músicas nas quais as letras foram tão ou mais importantes que os sintetizadores, as mudanças de andamento e compasso, a riqueza de sonoridades ou a experimentação sonora. Tendo suas raízes nos fragmentos da explosão da psicodelia na segunda metade dos anos 60, o rock progressivo foi se formando sob a mesma rejeição aos temas banais apresentados na música pop do período – romances, garotas, carros – e passou a explorar questões mais existenciais, viagens alucinógenas, utopias, dramas pessoais e ficções de toda a sorte.

A respeito da evolução nas temáticas das letras do rock dos anos 60, vale mencionar o surgimento de Bob Dylan, a guinada dos Beatles em deixar de tratar exclusivamente de temas amorosos em suas letras a partir do álbum Rubber Soul (1965), as letras de Jimi Hendrix e as primeiras óperas-rock (ou algo nesse sentido): The Story of Simon Simopath, do Nirvana, S.F Sorrow’s, dos Pretty Things, Tommy do The Who e Arthur, dos Kinks – obras puramente ficcionais. Também já havia experiências de álbuns conceituais, como a pedra fundamental Days of Future Passed dos Moody Blues ou mesmo Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles. Todos esses álbuns pavimentaram a liberdade temática do rock a partir de 1969, que não deixou de tratar de sexo, drogas e afins mas não ficou apenas nisso.

Na alvorada do estilo progressivo, alguns exemplos marcantes passaram a colocar grande importância nas letras – Moody Blues, com as poesias do baterista Graeme Edge, King Crimson, contando com a presença do letrista Peter Sinfield, Soft Machine com a poesia chapada do baterista Robert Wyatt e o Van der Graaf Generator, com a veia lírica do vocalista e tecladista Peter Hammill. Do outro lado do Atlântico, Frank Zappa e os Mothers of Invention injetavam acidez e crítica cotidiana nas letras de sua salada sonora.

Para os atentos há toda uma variedade de assuntos abordados dentro do rock progressivo – poesia clássica, temas dos folclores nacionais, ficção científica, niilismo, medievalismo, espiritualidade e religiosidade, humor, crítica social, sátira política, fatos históricos, guerras, futurismo, meio ambiente, humanismo, utopias. No aspecto literário, a obra de J.R. Tolkien (autor de O Senhor dos Anéis) foi uma fonte enorme de inspiração para os jovens ingleses da época, assim como as obras dos escritores Arthur Clarke, Aldous Huxley, Herman Hesse e George Owell.

Peter Sinfield e Peter Hamill merecem parágrafos a parte. O primeiro dos dois leva grande destaque por ter sido um dos mais famosos membros “não-instrumentista” de bandas progressivas, tendo integrado as primeiras formações do King Crimson com o cargo de letrista. Ele até arranhava alguma coisa na guitarra e cantava, mas um de seus amigos, Ian Mcdonald, se impressionava com a qualidade e imaginação de seus escritos. Quando Ian Mcdonald se juntou ao que restou do trio Giles, Giles & Fripp, e uma nova banda se formava, o tecladista e compositor fez lobby para que Sinfield se juntasse ao grupo com a função de escrever as letras para a banda. Sinfield entra em campo e já logo emplaca o nome de batismo da banda – King Crimson. Além das letras para as composições, Peter Sinfield era responsável pela iluminação dos shows. Ele também cuidava de diversos aspectos extra-palco, dando palpites no design das capas, e ocasionalmente operava algum brinquedo eletrônico para temperar de loucura as músicas do King Crimson, tendo participado ativamente da banda em seus 4 primeiros álbuns. Em 1973, Sinfield seria convidado a traduzir para o inglês as músicas da banda italiana Premiata Forneria Marconi, que ganharia um lançamento de suas principais músicas na Inglaterra através do selo Manticore, recém fundado pelo trio Emerson, Lake and Palmer. Naquele ano ele também lançou um álbum solo (chamado Still) repleto de convidados pela mesma Manticore Records. Apesar do desejo de ter a própria carreira solo, Sinfield é convencido a trabalhar como letrista do ELP e contribuiu decisivamente com o álbum Brain Salad Surgery, um dos mais bem sucedidos de toda a carreira da banda. Também contribuiu com o vocalista e tecladista Gary Brooker do Procol Harum em seu primeiro álbum solo.

Já Peter Hammill é uma grande referência enquanto compositor e letrista no rock progressivo, já que encarnava com um estilo único as características de trovador folk e uma espécie de cavaleiro das sombras da era psicodélica. Suas letras de música frequentemente são analisadas por estudantes de literatura na Inglaterra, onde desfruta de grande prestígio (tal qual Chico Buarque ou Caetano Veloso aqui no Brasil). Contribuem para a força de suas letras a riqueza de sua interpretação teatralizada. Alguns trechos de suas músicas (há uma horda de exemplos possíveis) valem a pena ser destacados:

“I only live in one room at a time,

but all of the walls are ears, all the windows, eyes :

Everything else is foreign,

‘Home’ is my wordless chant” (“A Louse is not a Motel”)

 

“Eyewitness

No time now for contrition:

the time for that’s long past.

The walls are thin as tissue and

if I talk I’ll crack the glass.

So I only think on how it might have been,

locked in silent monologue, in silent scream.

The maelstrom of my memory

is a vampire and it feeds on me

now, staggering madly, over the brink I fall.” (“A Plague of Lighthouse Keeper”)

Em se tratando do progressivo inglês, não poderia deixar de se mencionar o trabalho lírico de Peter Gabriel (Genesis) e Jon Anderson (Yes), com temas fantásticos repletos de nuances, pitadas de humor e ironia, ainda que muitas vezes caricatos, mas que ajudaram a construir a reputação dos grupos como os maiores bastiões progressivos da história. Por outro lado, o realismo crítico de Roger Waters, cuja ascensão como letrista se deu a partir do sucesso estrondoso de Dark Side of the Moon até desembocar no conceitual e político The Wall. Para os curiosos, é valioso buscar letras de bandas como Jethro Tull, Caravan, Camel, Gentle Giant, Strawbs, Gnidrolog, Gryphon, Curved Air, Gong, Greenslade e Hawkwind, que possuem vários aspectos interessantes abordados em suas letras.

Fora da Inglaterra, há destaques também como o Trettioariga Kriget na Suécia, que contava com um letrista como membro integrante, o Area, na Itália, por seu envolvimento com partidos políticos, o Ange na França com a poesia densa do vocalista Christian Décamps e a fantasia desoladora dos portugueses do Tantra. No Canadá, é indispensável mencionar o Rush, que tinha em Neil Peart um bom letrista e um excelente baterista.

No Brasil e na Argentina, também as letras tiveram sua importância no contexto progressivo. Dentre os hermanos, Luis Alberto Spinetta é uma referência com seus grupos Pescado Rabioso e Invisible na década de 70, cujas letras ou eram críticas vorazes ou eram deliciosos escapes da realidade de ditadura militar. A canção “El Anillo Del Capitan Beto” retrata bem o espírito da época:

“¿Dónde está el lugar al que todos llaman cielo?

Si nadie viene hasta aquí

a cebarme unos amargos como en mi viejo umbral

¿Por qué habré venido hasta aquí, si no puedo más de soledad?

Ya no puedo más de soledad.”

 

Já no Brasil o principal destaque fica com o Som Nosso de Cada Dia, que tinha a contribuição decisiva do poeta conhecido como Capitão Foguete (Paulinho Machado) em parceria com o baixista Pedro Baldanza, que escreviam verdadeiros petardos líricos para as maravilhosas viagens sonoras da banda:

“Díficil é ser o que se é,

e sentir, apenas

o roçar dos ventos no cabelos” (“A Outra Face”)

Outro que merece destaque é Guilherme Arantes, na curta carreira do Moto Perpétuo, e Nando Carneiro na Barca do Sol. Nando Carneiro é irmão de Geraldo Carneiro, poeta e hoje imortal da Academia Brasileira de Letras, que contribuía fortemente na parte lírica do grupo. Poesia de alto grau se encontra na obra das duas bandas:

“O sabor da verdade

deixa os homens parados

bom mesmo seria fazer

a cidade inteira se escutar

mas sem outro remédio

que se abrir a si mesmo

ao menos o máximo que der

Tome um banho sob o sono matinal” (“Matinal”, Moto Perpétuo)

 

“Cemitério de faróis

Sem um gosto e sem vinténs

Quando a ópera acabou

Sem degredo e nem porém

Quando o sonho terminou

Sem segredo e nem clarim

Eu reconheci na canção

Tudo que você escondeu” (“Fantasma da Ópera”, A Barca do Sol)

Hoje a questão lírica continua importante em diversos grupos, como Porcupine Tree, Dream Theather, Tool, Pain of Salvation, dentre outras, mantendo a mesma variedade temática e complementando a riqueza musical apresentada.


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