Como já explorado no primeiro texto desta série, o rock progressivo é a vertente mais eclética e rica em musicalidade do rock. Isso foi obtido, dentre outras maneiras, pelo uso de múltiplos instrumentos musicais além da usual formação do rock – bateria, baixo e guitarra. O rock progressivo (há quem chame a vertente de art-rock) mudou a forma de interação entre orquestras e bandas em meados dos anos 1960 e se valeu de captar alguns instrumentos orquestrais para dentro de suas formações fixas. Também o movimento psicodélico nos EUA tinha ânsia pela inovação na sonoridade do rock e obteve isso também pela inclusão de outros instrumentais menos usuais. Neste texto destacaremos a flauta, um instrumento que adquiriu grande envergadura na linguagem progressiva.
Os instrumentos de percussão e os de sopro são os mais antigos produzidos pela humanidade. Construída a partir de pedaços de ossos ou de madeira, os primeiros humanos poderiam emitir diferentes de sons a partir de seu sopro, emulando os pássaros e outros sons produzidos pelo vento. Não faltam exemplos da presença da flauta na mitologia de diversas culturas ao redor do mundo e a música folclórica de diversos países contou com a participação decisiva deste instrumento. Partindo para um grande salto cronológico da história, no ápice da música erudita entre os séculos XVII e XIX formações orquestrais usavam naipes de flauta transversa, bem como outros instrumentos de sopro de madeira.
A presença da flauta na música popular do século XX não era muito pronunciada. No jazz, alguns saxofonistas também tocavam flauta e alguns pioneiros começaram a introduzi-la conforme o estilo se desenvolvia. Três músicos podem ser destacados pelo papel primordial em introduzir a flauta no jazz a partir do fim dos anos 50 – Yusef Lateef, Herbie Mann e Roland Kirk. Esses três serviram de grande influência para uma geração de flautistas que surgiria nos anos seguintes e encontraria bom lugar no rock progressivo.
Um grande hit pop do ano de 1966 tinha um belo solo de flauta – “California Dreamin’”, dos Mamas and Papas. Na Inglaterra, Manfred Mann e seu sucesso “Mighty Queen” era outra canção com flauta que chegava no topo das paradas jovens. Os Beatles em 1965 colocaram um breve solo de flauta para encerrar a bela “You Got to Hide your Love Away”, assim como os Rolling Stones em “Ruby Tuesday” ajudando a colocar a flauta no imaginário pop do período, ainda que de forma muito discreta. Já em 1967, os Moody Blues e sua ousada obra Days of Future Passed trouxeram a presença da flauta de Ray Thomas como solista, além das flautas presentes na orquestra que acompanhava a banda no álbum. Nos EUA, os Mothers of Invention, combo experimental liderado por Frank Zappa teve a presença da flauta em diversas formações desde 1966.
Em 1968, surge na Inglaterra a mais icônica banda a ter um flautista como front-man: Jethro Tull. Ian Anderson, flautista, vocalista, violonista e líder do Jethro Tull, queria ser guitarrista na adolescência. Mas percebendo que a concorrência no instrumento era acirradíssima em meio a Jeff Beck, Eric Clapton, Jimmy Page, John McLaughin e vários outros futuros virtuosos, Anderson migrou para a flauta visando exclusividade de holofotes. E assim aconteceu – com a paulatina projeção de sua banda, Anderson sagrou o papel da flauta no rock dos anos 70 e fez (ainda que injustamente) todas as bandas de rock que utilizassem flauta a partir de então serem associadas ao Jethro Tull. Também vale mencionar o Traffic, importante grupo do rock inglês pós-1967, que tinha a flauta como segundo acessório de Chris Wood.
A partir de 1969 a presença da flauta adquiriu regularidade no nascente rock progressivo. Genesis, Van der Graaf Generator, King Crimson, Soft Machine, Nucleus, Hawkwind ou tinham flautistas dedicados ou tinham alguém que a empunhasse como segundo instrumento. Fora da Inglaterra, uma das principais bandas a colocar a flauta também em destaque foi o Focus, na Holanda, com o talento múltiplo de Thijs Van Leer. Em 1971, uma das mais clássicas faixas de toda a história do rock tinha flautas em sua introdução – Stairway to Heaven, do Led Zeppelin. Dois anos depois, a ascenção do Genesis como grupo de grande projeção internacional passou por faixas como “I Know what I Like (In Your Wardrobe)”, contando com uma indefectível intervenção de Peter Gabriel na flauta. Também o Camel ficou notável com a presença elegante da flauta tocada pelo guitarrista e vocalista Andy Latimer.
O número de possíveis citações para bandas com flauta só nos anos 70 chega próximo da casa das centenas. Na Itália, devido a forte influência do Genesis e do VdGG no som das bandas locais, uma enormidade de grupos contou com flautistas, das quais podemos citar Premiata Forneria Marconi, New Trolls, Osanna, Quella Vechia Locanda, Metamorfosi, Nuova Era, Campo di Marte, Latte e Miele, Delirium, Maxophone, Locanda delle Fate, entre várias outras menos celebradas. Na Alemanha, a flauta foi utilizado no contexto do rock experimental, na qual seu som era processado com efeitos de delay, eco, wah-wah em sons de bandas como Kraftwerk, Tangerine Dream, Yatha Sidhra, Mythos, ou mesmo nas que utilizaram a flauta na linha sinfônica, como Satin Whale, Neuschwanstein, Pell Mell, Wind ou Eden.
No Brasil, pela forte influência da música folk no rock, a presença da flauta não foi unusual. Os Mutantes a utilizaram eventualmente na fase tropicalista, tocada singelamente por Rita Lee. Os Incríveis, contando com o multiinstrumentista Manito, também a utilizaram, assim como o combo progressivo Som Nosso de Cada Dia. A passagem de Zé Rodrix pelo Som Imaginário e pelo trio Sá, Rodrix & Guarabyra também registrou a flauta (doce e transversa) em passagens icônicas do repertório destes grupos no começo dos anos 70. O uso mais intensivo da flauta, porém, ocorreu através do grupo A Barca do Sol, que tinha o flautista Marcelo Bernardes em sua formação, mas usos eventuais do instrumento se deram também em grupos como Scaladácida e Vímana (Ritchie Court), Terreno Baldio (João Kurk) e o Terço (Cezar de Mercês).
Assim como no caso do violino, a presença da flauta foi se tornando ficando cada vez mais escassa no rock, sendo apenas recolocada em pauta por bandas com claras deferências aos anos 70, como é o caso de Anglagard, Big Big Train, Ozric Tentacles, Blood Ceremony, Diagonal ou Witchwood.
Gostei, so uns detalhes: a intro de Stairway to Heaven é com mellotron…. E acho q vale lembrar da importância do instrumento na música popular urbana brasileira, via chorinho. Abraço!
Belo texto e narrativa. Show de bola, Ronaldo!
Excelente texto, Ronaldo. Bastante esclarecedor. De fato é um instrumento belíssimo, com uma sonoridade que muito enriquece a música, quando bem executada. No ROCK, n m o, Ian Anderson é o melhor.
Obrigado pelos comentários, pessoal!
Julian, o Mellotron era usado só para as execuções ao vivo…no estúdio foi gravado com flauta doce mesmo; chequei a informação. Obrigado pela contribuição.